“Xuri”: Ascensão e queda de um excluído no país da hipocrisia

 

 

 

Evandro B. Sathler *

 

 

 

Esta é a breve história de Xuri. Paulino Pereira da Silva é seu nome civil. Negro (ou afro-brasileiro) com um pé na África, Xuri nasceu pobre e foi criado como tal na comunidade baiana do Remanso, município de Lençóis. Iniciado nas letras pela precária escola da comunidade, Xuri aprendeu a ler e escrever. Pode ser considerado alfabetizado. Antes de completar 27 anos já havia se tornado um líder comunitário, e não precisou deixar sua terra e engrossar uma favela de uma capital qualquer para se tornar um excluído: tornou-se um em sua própria terra, por força da ingenuidade,  da má fé, da discriminação e da injustiça social.

 

Remanso é uma pequena comunidade. Como qualquer outra deste interior brasileiro. Não fosse uma grande diferença: seus habitantes são remanescentes de um quilombo, descendentes do Rei Obá, como se dizem. A comunidade está localizada à beira do Rio Santo Antonio, numa Unidade de Conservação: a Área de Proteção Ambiental – APA Marimbus-Iraquara, que é contígua ao Parque Nacional da Chapada Diamantina.

 

O povo do Remanso vive da pesca artesanal, tradição que mantêm desde que foi fundada. Por tal, podem ser considerados população tradicional, com os privilégios do Decreto 750/93 e da Lei 9985/00. A região é tida como um pantanal em plena Chapada Diamantina; e delicadíssima do ponto de vista ecológico. Por esta razão foi tal área englobada numa unidade de conservação. A Constituição Brasileira (ADCT 68) assegura que aos “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva...”.

 

Ascensão

 

A Chapada Diamantina viveu da extração do diamante por mais de um século. Uma atividade extremamente predatória, mas que desenvolveu aquelas paragens. Já há algum tempo que as jazidas encontram-se esgotadas para a extração manual, atividade esta conhecida como garimpo. Nos últimos anos, uma mineração travestida pelo termo garimpo, com suas terríveis dragas, vinha condenando córregos e rios ao desaparecimento. Uma tragédia sócio-ambiental em curso.

 

A pressão de ambientalistas na década de 80, fundamentadas pela lex mater de 1988, forçaram o banimento do dito garimpo, deixando desocupados uma legião de braços. Fenômeno semelhante ocorreu em Diamantina, Minas Gerais.

 

Paralelo ao declínio e interrupção da atividade de extração do diamante, o ecoturismo apresentou-se como alternativa econômica. Para a Chapada Diamantina convergiu a atenção de profissionais deste segmento e, em poucos anos, um grande fluxo de turistas. A cidade de Lençóis serviu como portal. Vários postos de trabalho foram criados aos poucos, com a implantação da infra-estrutura necessária para consolidar este novo e lucrativo destino. Oportunidades de trabalho foram surgindo também para guias e condutores de visitantes. Uma panacéia. Segundo alguns moradores de Lençóis, o diamante gerava mais dinheiro para menos pessoas, enquanto hoje, o turismo gera menos dinheiro para mais pessoas.

 

Os atributos naturais e belezas da Chapada Diamantina são internacionalmente reconhecidos. A região do Remanso, terra do Xuri, não ficou de fora.  Descobriram nela uma atividade acessória para os visitantes que chegavam a Lençóis. No Remanso – ou melhor – no Marimbus, é possível passear de barco pelo “pantanal da chapada”.

 

Assim, com o passar dos anos, várias agencias e operadoras de turismo foram desenvolvendo trabalhos no Remanso, envolvendo a comunidade. Xuri, pai de família, líder, espírito empreendedor, compreendeu a oportunidade trazida pelo ecoturismo, e passou a explorar sustentavelmente a vocação do lugar. Para tal recrutava seus irmãos-amigos-colegas de comunidade numa grande parceria, e trabalhavam todos unidos,  como remadores nos passeios de barco que promovia para turistas pelos rios que bem conheciam, desde criança, geração após geração. A atividade desenvolve-se, e mal ou bem, gerava recursos para vários na comunidade.

 

Xuri se destaca cada vez mais. Além de ser uma pessoa de estatura avantajada, forte, é também uma pessoa simples, humilde, ingênua. Com o trabalho ganha algum dinheiro. Projeta-se no cenário. É respeitado pelas agencias e operadoras de turismo de Lençóis. Trabalho não faltava. Os políticos da cidade também o respeitam, pois têm nele um cabo eleitoral que garante vitórias importantes nas urnas.

 

Queda

 

Xuri torna-se um empreendedor. Monta um quartel-general em Lençóis, alugando uma casa para centralizar suas atividades na cidade. Durante a alta estação (Julho – 2001), sub-locou o imóvel a umas pessoas de fora da cidade.

 

No dia 16 de agosto foi preso em flagrante, na casa quartel-general, com mais três indivíduos, todos acusados de tráfico de entorpecentes. Caíra nas malhas da implacável Lei 6.368/76 (entorpecentes), como cai um peixe numa rede de pesca. Para ele era o começo do fim e o fim do começo, tudo ao mesmo tempo.

 

Em seu depoimento na delegacia, segundo informações obtidas com familiares, pois nunca tivemos acesso ao inquérito, Xuri disse a verdade, com “V” maiúsculo. Admitiu ter fumado um cigarro de maconha (Cannabis sativa L) em companhia dos seus sub-inquilinos, e que os mesmos teriam enterrado no quintal certa porção da erva. Em nenhum momento foi informado de seus direitos constitucionais e muito menos assistido por um advogado na lavratura do flagrante.

 

O crime que lhe acusaram é considerado hediondo e não admite fiança. A comarca de Lençóis não possui juiz titular e tampouco cadeia. Assim, foi transferido para a carceragem de Seabra, cidade distante uma hora de Lençóis. Lá foi trancafiado e sua prisão preventiva decretada a pedido do Ministério Público.

 

A família e os amigos lhe providenciaram um advogado, Dr. Herber dos Reis, de Itaberaba, distante 130 km. de Lençóis. Um bom advogado. Desses que entendem a profissão como um sacerdócio e não como uma via para o enriquecimento. E foi este defensor da justiça, em exaustiva peregrinação entre comarcas, distantes 100, 200 quilômetros, à cata de um juiz substituto que lhe deferisse o pedido de revogação da prisão preventiva, que Xuri foi finalmente posto em liberdade, ainda que provisória, no dia 10 de Outubro de 2001, dia de seu aniversário. O pesadelo de uma Ação Penal apenas iniciara.

 

Quando retornava da cadeia de Seabra para Lençóis, acompanhado de seu advogado, Xuri relatou os 55 dias que passou no inferno. Desse relato, o que mais nos impressionou foi a sessão de tortura a que Xuri e demais presos foram submetidos. Em virtude de uma tentativa de fuga de alguns presos, a administração da cadeia em Seabra resolveu castigar a todos, “...deixando-os mais de 10 dias dormindo completamente nus; sem colchão, tendo o cimento da laje da cama como leito... a comida escasseou. É o famoso castigo que se dá aos presos ainda no Brasil, nestas e noutras circunstâncias... nas cadeias deste Brasil de meu Deus ... Xuri passou fome. Ele e seus companheiros. Passa-se fome dentro e fora da cadeia... Ah! se se passa... Teve pneumonia, ele e seus companheiros. Gritaram por médico e não foram atendidos. E quantos gritam nos corredores dos hospitais brasileiros... Ao contrário, refrescaram-lhes a cela com canecas d’água, para minar-lhes a vontade de sair do inferno... de fugir da morosidade e da injustiça da própria injustiça. Castigos cruéis...”, nos conta seu advogado, em emocionada narrativa.

 

O país da hipocrisia

 

            Direitos humanos? Para que servem? Se Xuri fosse branco e de classe média, certamente a história teria sido outra, sobretudo sendo inocente, já que o depoimento dos três sub-inquilinos lhe inocentavam. O que faltou a Xuri falta a uma grande parcela dos brasileiros excluídos: o reconhecimento de sua dignidade. A polícia agiu no cumprimento do dever. “Dura lex sed lex”, dirão! As circunstâncias e seu depoimento o culparam por antecipação. A verdade real não foi questionada, mas a prisão lhe foi certa. Sendo negro e pobre, foi enviado diretamente aos ferros do “aparteid” tupiniquim.

 

            Mas que lei implacável é esta capaz de colocar um ser humano atrás das grades preventivamente, sem ter matado ou roubado ninguém? É a Lei 6.368/76, aprovada em plena ditadura militar, e que dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito de entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica. No que pese a necessidade de prevenir o narcotráfico e o consumo indiscriminado de substâncias que causam dependência física e psíquica, entender a lei em tela é necessário conhecer outros aspectos. Que não são apenas técnicos, mas passam pelos meandros de um gigantesco negócio – lícito e ilícito -, que gira bilhões e bilhões de dólares pelo mundo afora. No final, é tudo uma questão de dinheiro.

 

            É notório que o Brasil é o país das leis. Das milhares de leis. Umas pegam e outras não. E algumas acabam pegando as minorias: os pobres, negros e outros excluídos. É o caso da 6.368/76, elaborada pelo regime de exceção, não para proteger a saúde dos brasileiros ou a segurança nacional, mas os bolsos insaciáveis de uma elite global. Senão vejamos.

 

Diz o artigo 2° desta lei que “Ficam proibidos em todo o território brasileiro o plantio, a cultura, a colheita e a exploração, por particulares, de todas as plantas das quais possa ser extraída substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. Mais adiante, no artigo 36, é dito: “Para os fins desta Lei serão consideradas substâncias entorpecentes ou capazes de determinar dependência física ou psíquica aquelas que assim forem especificadas em lei ou relacionadas pelo Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia, do Ministério da Saúde. Parágrafo único. O Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia deverá rever, sempre que as circunstâncias assim o exigirem, as relações a que se refere este artigo, para o fim de exclusão ou inclusão de novas substâncias”.

 

Pelo que se extrai de ambos os artigos acima, a inclusão ou exclusão de substâncias entorpecentes ou capazes de determinar dependência física ou psíquica  não obedece a técnica mas a simples discrição. Fosse a técnica, seriam o tabaco e a cana-de-açúcar  enquadradas nos artigos acima. Ou seria possível sustentar que o tabaco ou o álcool – extraído da cana-de-açúcar -  não produzem dependência física? O Ministério da Saúde adverte. A nicotina (encontrada no tabaco) é uma droga e causa dependência. Além de câncer e outras doenças mortais.  O tabagismo é responsável por um grande número de mortes no Brasil e no mundo, razão pela qual o Ministério da Saúde mantêm ampla campanha, afim de reduzir as terríveis conseqüências deste vício.  E o alcoolismo? Não seria este um terrível flagelo social? Ou vamos negar que o álcool transforma seus dependentes em fantoches, desintegra famílias e causa tantos prejuízos ao país.

 

Qual a diferença entre o consumo do tabaco ou álcool, por exemplo, em relação a maconha? A mesma que colocou Xuri na cadeia. As primeiras podem causar dependência física, pois, nem todos que fumam ou bebem são dependentes. E o Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia não os considera periculosos ao ponto de serem enquadrados no artigo 2° da lei de entorpecentes, embora faça campanha com dinheiro público alertando a população sobre os malefícios do vício, além de regulamentar severamente sua publicidade. Mas em nenhum caso é proibido. A segunda, uma planta nativa da Ásia, possui o THC (delta – 9 – tetra-hidrocanabinol), substância psicotrópica, capaz de produzir dependência psíquica. Esta é simplesmente enquadrada no artigo 2°, já referido, pela possibilidade da dependência psíquica, já que nem todos que fumaram ou fumam maconha, podem ser considerados dependentes. Contudo, a grande diferença não é, em nossa opinião, estar ou não figurando em relação ou em artigo de Lei, causar ou não dependência física ou psíquica. A diferença é o interesse econômico por trás. 

 

É inegável que a gigantesca indústria do tabaco e do álcool geram uma quantidade fabulosa de dinheiro. Dinheiro  lícito, pois no rigor da lei, nem um nem outro foram incluídos em lista alguma. Embora fosse possível, de acordo com a prescrição legal.

 

Governos de todo o mundo têm na industria do cigarro e do alcool a geração de tributos, em cifras astronômicas, que os tornam cúmplices do descaso. A hipocrisia é também um exercício globalizado. No caso da maconha, não existe indústria alguma. O que existe no Brasil em relação a maconha é um preconceito social, com raízes culturais profundas ligadas aos negros, que nossa sociedade -  pseudo branca - resolveu combater. Tudo isso incentivado pelos norte-americanos, que proibiram a maconha em 1937. O Brasil seguiu pelo mesmo caminho. O que antes era tolerado, passou para o submundo do crime e da corrupção, em virtude de sua criminalização.

 

Vale lembrar que a maconha chegou ao Brasil pelas mãos dos negros escravos, dos quais descende o Xuri de nossa história. Com o fim da escravidão (1888), muitos negros foram abandonados à própria sorte. Num cenário urbano, alguns passaram a viver de biscates, outros permaneceram desocupados, vivendo do que podiam. Estes, reunidos nas esquinas, bebendo sua cachaça, fumando maconha e jogando capoeira, verdadeiros desocupados, na concepção de então, mas no exercício da tão impossível liberdade, atentavam contra a nova “ordem e progresso” republicano. Bagunceiros que eram estes desocupados, envolvidos aos poucos em pequenos delitos, como o furto, passaram a ser combatidos. A maconha bem como a capoeira, eram associadas à bagunça perpetradas por estes negros – ex-escravos -  desocupados, e foram por extensão e ostensivamente reprimidas.

 

Certo é – desde então - que as cadeias estão repletas de negros-pobres, acusados de tráfico. Mas os grandalhões deste tráfico, raramente são pegos, pois os que deviam pegá-los, são provavelmente os mesmos que lucram com o negócio ilícito.

 

Noutro cenário, existem as drogas lícitas. Aquelas produzidas pela bilionária indústria farmacêutica, cujos interesses poucos desafiam. Esta industria produz, a título de exemplo, um medicamento chamado Lexotam, a base de benzodiazepina, apelidado de “baseado de madame”. Este remédio – de tarja preta – depende de receita médica, pois seu abuso pode causar dependência física. Por ser um medicamento, é absolutamente aceito pelas autoridades e por pacientes. Não se discute as vantagens medicinais do Lexotam (a maconha também tem). Mas há casos em que o rigor da prescrição médica, ou da necessidade médica, sejam questionados. Alguém já ouviu falar de alguém preso por ter sido flagrado portando uma caixa de Lexotam sem receita médica? Improvável. Em qualquer caso, trata-se de um medicamento lícito, que gera ICM, IPI, e que “cura doentes”.

 

Não seria difícil imaginar que por trás de tanta repressão a maconha esteja o interesse da industria farmacêutica. Afinal, existem algumas propriedades medicinais atribuídas a maconha e que ainda são tratadas com reservas, dado ao preconceito que envolve esta planta. Por muitos anos plantava-se maconha para extração de fibras, das quais se produzia cordas e tecidos. Com o advento do fio de “nylon”, desenvolvido por “Tio Sam”, a industria têxtil execrou a planta da maconha da noite para o dia. É tudo uma questão de dinheiro, como já dissemos, que baila ao arbítrio deste ou daquele segmento econômico.

 

Fala-se hoje em bio-pirataria e patentes. Berram pela proteção do conhecimento tradicional de nossos nativos e no uso de princípios ativos medicinais encontrados na flora brasiliense, usurpados pelos interesses da indústria da doença. Alguns destes conhecimentos são detidos por populações tradicionais, como a do Xuri. O tema é por demais importante. Há que se manter olhos abertos. A seguir por esta senda, amanhã ou depois, atendendo aos interesses internacionais, seremos impedidos de usar nossas plantas,  patenteadas que serão, como querem. E  até sermos presos e condenados (como querem com o Xuri) por tomar um chá de erva cidreira, de espinheira santa ou capim limão, por exemplo.  Parece exagero mão não impossível.

 

            Não estamos defendendo o uso da maconha ou qualquer outra droga. Longe disso. E não existe aqui apologia ao crime. O que defendemos é a criminalização do cigarro e do álcool. Insanidade? Claro que não! Enquanto isto não é possível, por motivos econômicos, é claro, justo seria, portanto, descriminalizar o uso da maconha, e desestimular seus usuários, com campanhas sérias, no mesmo quilate e empenho daquelas utilizadas para convencer os dependentes do tabaco a abandonar o vício.

 

De outra forma, como pode o Estado condenar o Xuri a prisão? Com que moral podem acusa-lo de crime considerado hediondo, se sob sua tutela, na cadeia, o Xuri foi submetido a maus tratos e torturado. A tortura é igualmente crime hediondo. Condenar o Xuri é referendar a injustiça social com a caneta da hipocrisia. É condenar a cultura negra. É privar uma comunidade (Remanso) de seu líder. É atentar contra o meio ambiente. É cuspir na cara da história brasileira.

 

 

 

* Advogado ambientalista